Doença de Kienböck

Doença de Kienböck

Rodrigo Villas Boas Pinto

Texto elaborado na qualidade de autor convidado para o “Projeto Lâminas”, da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia-2010

A doença de Kienbock é uma condição clínica caracterizada por dor e perda progressiva de amplitude de movimento no punho, em virtude de fragmentação e colapso do osso semilunar.

Foi descrita em 1910 pelo radiologista vienense Robert Kienbock, que reportou as alterações radiológicas de uma série de pacientes e postulou como causa da doença um evento traumático com disrupção do suprimento vascular daquele osso. 

Progressos consideráveis foram realizados na compreensão da fisiopatologia e tratamento da doença, porém a etiologia permanece obscura e sujeita a controvérsia até a presente data, exatamente um século após a descrição de Kienbock.

Os traumatismos articulares maiores (fraturas e luxações do carpo) já não são considerados como causa da condição.

A teoria atual é de que haja uma somatória de fatores (etiologia multifatorial), incluindo algum mecanismo de estase venosa com aumento da pressão intra-óssea, insuficiência arterial constitucional do semilunar (menor quantidade de vasos penetrantes ou anastomoses intraósseas), microtraumas repetidos e predisposição mecânica a cisalhamento.

Apesar de a etiologia ser ainda desconhecida, alguns fatores predisponentes vem sendo apontados. O mais clássico (apesar de ocasionalmente contestado) é a variação negativa da ulna com relação ao rádio, medida na articulação rádio-ulnar distal e definida como um desnível igual ou maior que 02 (dois) milímetros em favor do rádio.

A chamada ulna-minus foi encontrada em 78% dos pacientes da série de Hultén (1928), ao contrário da distribuição esperada na população não afetada (em torno de 20%).

Outros fatores são a morfologia do semilunar, e o suprimento arterial insuficiente do osso.

A doença afeta tipicamente indivíduos jovens (20 a 40 anos) e do sexo masculino ( 2 vezes mais que em mulheres), sendo quase exclusivamente unilateral.

Os achados clínicos incluem dor, sinovite e diminuição progressiva de força e flexo-extensão do punho. O sistema de estadiamento atualmente usado é o descrito por Lichtman em 1977:

Estágio 1: radiografia normal, exceto pela possibilidade de fratura linear.

Estágio 2: aumento da densidade óssea (esclerose do semilunar)

Estágio 3: fragmentação e colapso do semilunar, sendo subdividido em :

3-A: sem perda da altura carpal

3-B: com perda da altura carpal, observada através da subluxação rotatória do escafóide

Estágio 4: pan-artrose do punho

Radiografia- paciente em Estágio 3-B. 

Ocorre progressão bem-documentada através dos vários estágios até a pan-artrose do punho, apesar de haver frequentemente dissociação clínico-radiológica.

Não obstante as dúvidas a respeito da história natural da doença, considera-se que não há possibilidade de regressão com o tratamento conservador, motivo pelo qual a cirurgia é geralmente indicada.

As variáveis que influenciam no tratamento da doença são o estágio (segundo o sistema de Lichtman), a variância ulnar, a presença ou não de alterações degenerativas e a integridade do invólucro cartilaginoso do osso.

De maneira geral, os tratamentos podem ser agrupados em 03 (três) categorias: mecânicas (para descompressão do semilunar), biológicas ( para revascularização) e cirurgias de salvamento.

Entre as abordagens mecânicas, incluem-se os procedimentos de nivelamento articular (encurtamento do rádio ou alongamento da ulna), as osteotomias angulares do rádio ( abertura ou fechamento de cunhas laterais ou mediais) e as artrodeses intercarpais limitadas.

Todos visam à diminuição de carga sobre o semilunar. O encurtamento do rádio permanece até o momento como o procedimento padrão para os punhos com ulna-minus em todos os estágios (à exceção dos avançados).

É realizada com ressecção de 02 a 04 mm da metáfise ou da diáfise distal do rádio, com osteotomia transversa ou oblíqua, e com fixação por placa DCP ou T-volar.

É bem-documentada a melhora da dor, movimento, função e força após o procedimento, bem como ausência de progressão ou progressão mais lenta da doença . Os demais procedimentos apresentam resultados conflitantes, necessitando estudos adicionais. 

A revascularização direta consiste na transferência de um pedículo vascular ou de tecido ósseo vascularizado para o semilunar.

Em 1979, Hori e Tamai relataram sua experiência com a transferência da segunda artéria intermetacarpal. Vários outros procedimentos foram descritos, incluindo transferências vascularizadas do pisiforme, de segmentos do rádio distal num pedículo vascularizado do músculo pronador quadrado, de ramos das artérias metacarpianas dorsais e mesmo da artéria interóssea posterior, e enxerto vascularizado livre retirado da crista ilíaca.

Após a descrição do suprimento vascular da metáfise do rádio distal em um trabalho clássico realizado na Mayo Clinic (Sheetz, 1994), tornou-se corrente a implantação de um enxerto vascularizado baseado nas artérias do 4° e 5° compartimentos extensores, o que simplifica o procedimento por envolver simultaneamente a retirada do enxerto ósseo e do pedículo vascular, em um mesmo acesso dorsal.

As indicações usuais para a revascularização direta são os punhos com ulna neutra ou positiva, em que o encurtamento do rádio está contra-indicado pelo risco de desenvolvimento de impacto ulno-carpal.

Os pré-requisitos básicos são a ausência de artrose e de fratura com diástase dos fragmentos. Enquadram-se, portanto, os pacientes nos estágios até III-A.

É condição essencial, ainda , que não haja lesão traumática ou abordagem cirúrgica prévia com disrupção do suprimento vascular dorsal no punho.

A revascularização indireta é obtida pela hiperemia em toda a região do punho que se segue à maioria dos procedimentos cirúrgicos na região.

Seguindo essa teoria, Illarramendi (2001) propôs a chamada descompressão metafisária, em que simplesmente aborda e cureta a metáfise do rádio (na descrição original, abordava-se também a metáfise ulnar), evitando as potenciais complicações de outros procedimentos (incongruência, impacto ulno-carpal, uso de implantes, pseudoartroses, etc).

Por fim, nos estágios tardios, estão indicados procedimentos para alívio da dor e preservação da função. A carpectomia proximal é uma possibilidade, apesar de indicação restrita (somente quando as superfícies articulares do rádio e pólo proximal do capitato estão preservadas).

Quando a amplitude de movimento ainda se encontra funcional, a desnervação do punho através de neurectomias seletivas é uma opção razoável.

Quando a perda de movimento é avançada, a artrodese do punho permanece como o procedimento padrão.

As artroplastias do punho ou semilunar não tem apresentado resultados consistentes até o momento.

Bibliografia

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