Instabilidade carpal escafo-semilunar
Autor: Rodrigo Villas Boas Pinto
Texto elaborado na qualidade de autor convidado para capítulo do livro “Casos Clínicos em Ortopedia e Traumatologia” – Editores :Barros F°,T. E.; Kojima, K.E.; e Fernandes, T. D.- Ed Manole, 2009
O Comitê de Anatomia e Biomecânica da Federação Internacional das Sociedades de Cirurgia da Mão -IFSSH definiu instabilidade do carpo como a “incapacidade sintomática de manter o alinhamento normal dos ossos do carpo sob cargas fisiológicas, bem como de realizar movimentos fisiológicos sem alterações súbitas do alinhamento intercarpal”. Essa definição, então, reforça a importância de três parâmetros: a disfunção clínica, a cinética (transferência de carga) e a cinemática (referente à alteração do movimento) (1).
Dentre as instabilidades carpais, destaca-se, pela frequência e potencial de morbidade, aquela que resulta da lesão do ligamento interósseo escafóide-semilunar. O texto e imagens a seguir apresentam características do quadro e a técnica preferida por este autor para seu tratamento.
O ligamento interósseo escafo-lunar é uma estrutura em formato de C que se insere nas margens das superfícies articulares de ambos os ossos. É composto por uma porção palmar, uma dorsal e uma proximal, todas completamente diferentes do ponto de vista anatômico, biomecânico e funcional. O componente mais forte e importante funcional e clinicamente é a porção dorsal, e por isso são dirigidos a ela os esforços no sentido de seu reparo ou reconstrução (4, 5).
A instabilidade escafo-semilunar é, indiscutivelmente, a forma mais comum de instabilidade do carpo. Após o evento inicial, que é a ruptura do ligamento interósseo escafo-lunar, desenvolve-se quase que invariavelmente uma disfunção grave no punho , à medida em que os estabilizadores secundários (ligamentos escafo-trapézio, escafo-trapezóide e rádio-escafo-capitato) também vão entrando em falência. O estágio final do processo é quase sempre um padrão de artrose grave do punho conhecido como SLAC (iniciais em inglês de “colapso avançado escafo-lunar”).
O processo de decisão quanto ao tratamento envolve a análise de muitas variáveis, incluindo o tempo decorrido desde a lesão (que correlaciona-se , aproximadamente, com o potencial de reparo do ligamento), a existência ou não de desalinhamento e de artrose, a demanda funcional, a idade e a severidade dos sintomas.
Nas fases extremas desse espectro amplo de apresentações, os objetivos e recursos são razoavelmente claros. Na fase aguda, se ocorre ruptura completa do ligamento, há consenso quanto à ineficiência do tratamento não-cirúrgico, com redução e imobilização(4). Portanto, se ainda existe o potencial de reparação do ligamento, obtém-se ótima função somente quando sua porção dorsal é reinserida, geralmente por sutura trans-óssea ou com auxílio de âncora. A pinagem percutânea temporária só tem bons resultados se a ruptura for incompleta ao exame artroscópico e não houver quadro clínico de instabilidade(4). Na fase crônica com artrose, ou fase tardia, as opções de tratamento buscam o alívio da dor e o retorno da função, se possível com preservação de movimento (artrodeses limitadas, carpectomia proximal, denervação), porém às vezes sendo necessária a fusão total.
A controvérsia permanece na fase crônica sem artrose, ou seja, quando já não há possibilidade de reinserção do ligamento, porém ainda não há artrose. Várias técnicas vem sendo utilizadas ao longo dos anos, desde artrodeses parciais (tri-escafo, escafo-capitato) (6,7), capsulodeses ( Blatt e modificações, entre outras)(8,9,10), tenodeses (com feixes dos tendões flexor radial do carpo, extensor radial longo do carpo, etc)(2,11) e outras (enxertos osso-ligamento-osso, enxertos de ligamentos do pé, e até fixação permanente da articulação escafo-lunar). Optamos pela técnica demonstrada a seguir porque permite, ao mesmo tempo, a correção da subluxação rotatória do escafóide e do semilunar, reconstruindo o complexo ligamentar triescafóide (distalmente) e o ligamento intrínseco escafo-lunar (proximalmente). Por não exigir fusões ósseas, preserva os movimentos fisiológicos de ambos os ossos sem as sequelas das artrodeses intercarpais limitadas; e por utilizar uma estrutura de “parte mole” que não cruza a articulação rádio-cárpica como na capsulodese de Blatt, há uma perda pós-operatória de amplitude de movimento consideravelmente menor. O problema das tenodeses é que as propriedades biomecânicas (resistência e elasticidade) do tendão não reproduzem com exatidão as propriedades do ligamento.
Caso clínico
Figura 1 -Radiografia em PA: observa-se o sinal de Terry-Thomas, que consiste no aumento do intervalo escafo-lunar (neste caso, medindo 05 milímetros). Observa-se ainda o sinal do anel, que consiste na imagem da cortical da tuberosidade do escafóide, agora possível de ser vista em virtude da posição fletida em que se encontra o osso. Outra alteração que a radiografia mostra é imagem aparentemente mais triangular do semilunar, devido à sua posição em extensão, em contraste com o formato retangular que se observa normalmente quando seu alinhamento com o rádio encontra-se preservado.
Figura 2 –Radiografia em perfil: observa-se a extensão do semilunar, desviando dorsalmente seu eixo com relação ao eixo longitudinal do rádio (ângulo rádio-lunar normal: até 15°), enquanto o escafóide sofre flexão (instabilidade rotatória). Devido aos desvios citados, o ângulo entre o escafóide e o semilunar sofreu aumento, medindo 88° (o ângulo fisiológico deve medir entre 30° e 60°, com média de 46°). Há ainda pequeno corpo livre na margem articular dorsal do rádio.
Figura 3- “Tenodese dos três ligamentos” -publicada por Marc Garcia-Elias (reproduzido da referência 2 com permissão da Elsevier)
Técnica cirúrgica:
1-bloqueio do plexo braquial;
2-acesso dorsal longitudinal ao punho, da base do 2° metacarpiano até 02 cm proximais ao tubérculo de Lister. Abordagem do espaço entre o 3° e 4° túneis, com secção de pequeno segmento distal do retináculo entre estes.
3-capsulotomia dorsal “poupadora de ligamento” – não consideramos necessária a incisão distal sugerida por Marc Garcia-Elias, e por isso fazemos somente o acesso em V, com um braço ao longo da margem distal do rádio e o outro dirigido da superfície dorso-ulnar do rádio até o piramidal, ao longo portanto do ligamento rádio-cárpico dorsal;
4-inspeção da lesão e debridamento de tecido interposto, corpos livres, etc. É extremamente procedente a sugestão do autor de se proceder à neurectomia do interósseo posterior;
5-incisão palmar sobre o tendão flexor radial do carpo, com dissecção do mesmo na tuberosidade do escafóide e mobilização até 10 cm proximais. Mobilização de feixe de hemitendão do mesmo com base distal na própria tuberosidade;
6-broqueamento de túnel com broca 3.2 desde o pólo proximal no dorso do escafóide até a tuberosidade na incisão palmar (com passagem prévia de fio de Kirschner 1.5 para teste da direção correta ). Também aqui adaptamos a técnica publicada, que sugere uso de broca canulada sob controle fluoroscópico;
7-passagem do hemitendão pelo túnel com auxílio de alça confeccionada com fio de aço 2-0;
8-redução do semilunar à posição anatômica, i.e., com eixo alinhado ao rádio e capitato. Realizamos novamente pequena adaptação à técnica publicada, fixando transitoriamente o semilunar nesta posição através de fio de Kirschner dirigido desde a borda radial da metáfise do rádio, cruzando a articulação rádio-semilunar, para facilitar o preparo da canaleta no semilunar.
9-é preparada então uma canaleta transversal (sentido rádio-ulnar) no dorso do semilunar, com broca 3.2 e osteótomo delicado. Segundo Garcia-Elias e cols, a profundidade dessa canaleta deve atingir o osso subcondral, para fixação ótima do tendão;
10-inserção de mini-âncora (02 mm) na canaleta do semilunar;
11-o hemitendão é “deitado” na canaleta e depois passado através de orifício no ligamento rádio-cárpico dorsal, sendo então feita alça para que novamente seja depositado sobre si próprio. As suturas não são ainda realizadas;
12- redução da subluxação rotatória do escafóide e estabilização da mesma através de fixação do escafóide com um fio K ao capitato e outro ao semilunar;
13-Somente aí são realizadas as suturas, buscando se manter tensão máxima na alça do hemitendão;
14-retirada do fio K transarticular provisoriamente colocado para estabilizar o semilunar; capsulorrafia e sutura por planos;
15- manutenção de tala curta incluindo o polegar e dos fios de Kirschner por 06 semanas. Após a remoção dos fios K, início do programa de reabilitação.
Figura 4- Visão dorsal, observando-se, através da cápsula rebatida distalmente, o espaço escafo-lunar aumentado (mostrado por pinça apoiada no pólo proximal do capitato). Observa-se somente pequena porção do pólo dorsal do semilunar, comprovando sua posição hiper-estendida (DISI).
Figura 5- Por acessos palmares, preparada tira com hemitendão do flexor radial do punho, baseada distalmente na tuberosidade do escafóide.
Figura 6- Visão dorsal, observando-se a canaleta no semilunar, que já se encontra reduzido e estabilizado provisoriamente por fio K trans-articular. A abertura dorso-proximal do túnel no escafóide também é mostrada.
Figura 7-O feixe de tendão já foi passado através do túnel, e a miniâncora já foi posicionada no semilunar.
Figura 8- Aspecto final, após a passagem do enxerto através do ligamento rádio-cárpico dorsal e sutura em alça a si próprio. Observam-se ainda os fios K já posicionados e cortados.
Figura 9- Radiografia pós-operatória mostrando a correção dos eixos do escafóide e do semilunar, bem como o fechamento do intervalo escafo-semilunar. Mostra-se ainda a posição dos implantes (fios K e mini-âncora).
Tabela 1- Análise da instabilidade carpal- Larsen, modificado(3)
Cronicidade | Constância | Etiologia | Localização | Direção | Padrão |
Aguda: <01 semana | Pré-dinâmica | Congênita | Radiocarpal | Rotação em VISI | Dissociativa |
Subaguda: 01 a 06 semanas | Dinâmica | Traumática | Intercarpal proximal | Rotação em DISI | Não-dissociativa |
Crônica:>06 semanas | Estática redutível | Inflamatória | Médio-carpal | Translação ulnar | Complexa |
Estática irredutível | Artrítica | Intercarpal distal | Translação radial | Adaptativa | |
Neoplásica | Carpo-metacarpal | Translação palmar | |||
Iatrogênica | De ossos específicos | Translação dorsal | |||
Miscelânea | Translação proximal | ||||
Translação distal |
Referências
1 – Comitê de Anatomia e Biomecânica da Federação Internacional das Sociedades de Cirurgia da Mão. Definition of Carpal Instability. J Hand Surg 1999; 24A (4):866-867
2- Garcia-Elias M, Lluch AL, Stanley JK. Three-ligament tenodesis for the treatment of scapholunate dissociation: indications and surgical technique. J Hand Surg 2006; 31A (1):125-134
3 – Larsen CF, Amadio PC, Gilula LA, Hodge JC. Analysis of carpal instability: I. Description of the scheme. J Hand Surg 1995 ;20A :757-764
4 – Kuo CE, Wolfe SW. Scapholunate instability: Current concepts in diagnosis and management. J Hand Surg 2008; 33A: 998-1013
5 – Berger RA, Imeada T, Berglund L, An K. Constraint and material properties of the subregions of the scapholunate interosseus ligament. J Hand Surg 1999; 24A:953-962
6 – Watson HK, Wollstein R, Joseph E, Manzo R, Weinzweig J, Ashmead D. Scaphotrapeziotrapezoid arthodesis: A follow-up study. J Hand Surg 2003; 28A: 397-404
7 – Siegel JM, Ruby LK. Critical look at intercarpal arthrodesis: review of the literature. J Hand Surg 21A (4):717-723
8- Moran SL , Cooney WP, Berger RA , Strickland J. Capsulodesis for the treatment of chronic scapholunate instability. J Hand Surg 2005;30A(1):16-23
9 – Schweizer A, Steiger R. Long-term results after repair and augmentation ligamentoplasty of rotatory subluxation of scaphoid. J Hand Surg 2002; 27A:674-684
10 – Szabo RM, Slater RR, Palumbo CF, Gerlach T. Dorsal intercarpal ligament capsulodesis for chronic , static scapholunate dissociation: clinical results. J Hand Surg 2002; 27A: 978-984
11 – Dagum AB, Hurst LC, Finzel KC. Scapholunate dissociation: an experimental kinematic study of two types of indirect soft tissue repairs. J Hand Surg 1997; 22A: 714-719